domingo, 18 de março de 2012

Barba no Esmalte e Navalha na Garganta


Fios de cabelo se espalham pelo chão mal varrido do local decadente que já insiste por anos em não fechar as portas.  As navalhas, tão desgastadas quanto a relação de Aldo Rebelo e Jerôme Valcke, levam diariamente os poucos e fiéis clientes a minutos de extremo perigo enquanto toalhas em tom sépia combinam poeticamente com o mofo das paredes, vítimas de infiltrações mal resolvidas. Do lado de fora, o jogo do bicho recebe as apostas na banca improvisada ao som de fundo das intermitentes batidas do dominó sob os tabuleiros de madeira. Solo sagrado de épicos embates lúdicos que se arrastam por horas a fio na calçada ou praça logo ao lado. 

O cenário de abandono que retrata a iminente extinção das clássicas barbearias dos grandes centros urbanos, acaba trazendo um novo desafio para o homem contemporâneo: Encontrar um lugar agradável para cortar o cabelo. Tudo isso por conta da transformação de um ritual, ora prazeroso e singelamente carregado de testosterona, numa sessão de tortura psicológica mais intensa que tratamento de canal numa sexta-feira a tarde. Os salões, mesmo quando ditos 'Unisex' nos recebem agora de outra forma. A névoa da fumaça dos cabelos queimados atenua os olhares semi-cerrados de ódio das clientes em nossa direção, pois agora precisam proteger segredos e pensamentos com prendedores, papel laminado e outros acessórios dentro do alcance. As funcionárias, atônitas e desconfiadas, não sabem mais ao certo como se portar, já que boa parte dos assuntos agora parece mais tabu que comer manga com leite e a proprietária até se esforça, tentando com um sorriso amarelo, nos convencer que está tudo bem e seremos todos amigos (não para sempre como na música de formatura mas ao menos durante aquela hora). Mas tudo não passa de uma farsa que dura poucos minutos.

Depois de vencida a barreira da entrada, tudo ainda pode piorar. Basta saber que ainda vamos ter que esperar nossa vez. O ar, mais pesado que as estantes de esmaltes em degradê, provoca tantos delírios que nos vemos forçados a cheirar revistas de celebridades num ato visceral de sobrevivência para aguentar mais tempo. Por fim, quando chega nossa hora, tudo é muito rápido (principalmente se já não for a primeira vez). Pouquíssimas palavras são trocadas. Tesouradas pra cá, tesouradas pra lá, uma aparada na nuca, nas costeletas e para fechar o serviço, umas duas ou três alisadas finais na cabeça como se nos dissessem com ternura: Parabéns ... você conseguiu mais uma vez. Assim, tiramos a bata, saímos orgulhosos, aliviados e pensando ... não seria a hora de começar a deixar o cabelo crescer mais um pouco?

7 comentários:

  1. A nostálgica barbearia me fez lembrar os quase extintos lambe-lambes. Até onde sei ainda existia um próximo à praça Deodoro.
    Ainda acho que barbearia vai voltar como modismo.

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  2. Na rodoviária há uma barbearia clássica! É bem nostálgico observá-la enquanto se aguarda pelo bus!
    Interessante dizer que, pelo menos nós homens, sempre procuramos ir ao mesmo barbeiro (se é que ainda existe tal termo) ou cabeleireiro de sempre. Incrível a minha dificuldade para mudar o endereço de onde corto o cabelo. São décadas cortando com a mesma pessoa e quando mudamos o endereço do salão, mais algumas décadas terão que se passar para a próxima mudança!! Também acredito no retorno das barbearias, mas com outra "roupagem"!

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  3. André, se quiser lhe passo o endereço do meu barbeiro, ótima pessoa, perto da sua casa e, principalmente, barato, além disso, como ele próprio diz: "Só quem sabe cortar cabelo de homem é o barbeiro".
    Fica próximo a antiga churrascaria do bigode, na jatiúca.

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  4. Bom, não sei se compreendi corretamente o texto, mas arrisco comentar...
    Os fatos narrados, de alguma forma, me fazem pensar na magia das coisas. Talvez, num passado não tão remoto, o prazer de ir a uma barbearia - e não a um "salão unissex" - não fosse o descrito acima. Talvez nesse tempo, ir a barbearia fosse só uma atividade comum, um prazer tão ínfimo que nem ao menos era percebido. A rotina do nosso dia-a-dia é transformada silenciosamente. Leva e traz coisas, pessoas, amores, dessabores, vontades... Saudades. A nostalgia do texto, a falta de um "lugar seguro" para cortar o cabelo, me faz pensar em grandes coisas pequenas... Pedaços de nossas vidas que são mudados silenciosamente, apagados, reescritos. E nós, simplesmente, não percebemos as mudanças. Para mim, são como pequenas gotas de água de nosso cantil que vão se perdendo ao longo do caminho... e que só percebemos que caíram quando temos sede.

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    1. Adorei teu comentário. Na próxima me diz quem é tu ok? ;)

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  5. Muito bom, André. Traz várias lembranças. Já frequentei salões punk mesmo; quer dizer, salões não é o termo adequado. Basicamente, um corredor com um banco de madeira na frente, para os clientes à espera, uma cadeira de barbeiro, logo após uma pia para lavar as mãos, e no final o banheiro do barbeiro, dificilmente usado por outro que não ele. Lá fora, todo o furor da praça Guedes de Miranda nos seus tempos selvagens.

    Grande abraço!

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